Ao analisar a conveniência de celebrar um contrato com execução continuada ou diferida, é normal que as pessoas se preocupem quanto à atmosfera econômica que irão encontrar no período de cumprimento das prestações. Com efeito, a adequada identificação dos riscos auxilia as partes, na medida em que muitas vezes dispõem de mecanismos para eliminá-los ou – ao menos – reduzi-los (cláusulas resilitivas, resolutivas, contratação de seguro, hegde, etc.).
Contudo, por mais cauteloso que seja o negociante, por melhor que esteja assessorado, o destino sempre pode reservar surpresas, cuja capacidade para atingir a relação contratual não pode ser ignorada. Como salienta Vincenzo Roppo, “mai il futuro è uguale al presente”. É oportuna a observação de François Ost, quando salienta que o tempo é, sem dúvida, o “elemento decisivo da economia contratual”, afinal o contrato é a antecipação daquilo que virá, é o futuro irrevogavelmente comprometido.
Ciente dessa ineliminável influência do tempo na relação obrigacional, o Direito idealiza formas de adaptar o conteúdo do contrato à nova realidade. Um dos remédios mais recentes, observados no sistema civil brasileiro, é a chamada “resolução por onerosidade excessiva”, prevista no art. 478 de nosso Código Civil. Até então, possuíamos outros meios para tentar domesticar o fator tempo na economia dos contratos de execução diferida ou de longa duração.
A doutrina da resolução pela onerosidade excessiva encontrou na Itália seu berço legislativo. Ainda dispõe, naquele país, o art. 1.467 do Código Civil de 1942, que “nei contratti a esecuzione continuata o periodica ovvero a esecuzione differita, se la prestazione di una delle parti è divenuta eccessivamente onerosa per il verificarsi di avvenimenti straordinari e imprevedibili, la parte che deve tale prestazione può domandare la risoluzione del contratto, con gli effetti stabiliti dall’art. 1.458”. Outrossim: “la risoluzione non può essere domandata se la sopravvenuta onerosità rientra nell’alea normale del contratto”; “la parte contro la quale è domandata la risoluzione può evitarla offrendo di modificare equamente le condizioni del contratto”.
A seguir, são estabelecidas duas regras específicas para o emprego da teoria: (a) caso se trate de um contrato no qual apenas uma parte tenha assumido obrigações, ela poderá postular a redução da sua prestação ou mesmo uma modificação na modalidade de execução, suficiente para reconduzi-la à equidade (“art. 1468 – Contratto con obbligazioni di una sola parte”); b) é expressamente afastado do âmbito de aplicação da teoria o contrato aleatório, quer pela sua natureza, quer pela vontade das partes (“Art. 1469 – Contratto aleatório”).
A preocupação do legislador peninsular era a de proteger os contraentes contra eventuais desproporções das prestações assumidas em razão do largo tempo decorrido entre a estipulação do contrato e sua execução. É certo que, tanto mais próximo seja o adimplemento, quanto menor será o risco de que, em virtude de eventos extraordinários, a prestação torne-se subitamente demasiado onerosa para qualquer das partes. Daí a natural justificativa para que a teoria seja predominantemente utilizada nos contratos com a execução diferida ou continuada.
Historicamente, a doutrina italiana, corretamente, assinala que o mero aumento da dificuldade ou do custo da prestação não constituem uma causa extintiva da obrigação, tampouco uma situação que ordinariamente exonere o devedor de cumprir. Entretanto, o art. 1467 tempera a regra geral, a fim de evitar que a sua aplicação possa “portare a dei risultati che il legislatore considera poco opportuni”. Ou seja, quando eventos extraordinários e imprevisíveis atinjam o programa contratual, tornando a prestação impossível, entraria em cena a teoria da “risoluzione per eccessiva onerosità supravenuta”. A teoria, portanto, é excepcional e como tal deve ser enfocada.
A doutrina foi assimilada pelo Código Português de 1966, o qual, em seu art. 437, disciplinou a figura da resolução por onerosidade excessiva nesses termos: “1. Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de eqüidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. 2. Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior.”
Sem dúvida, o Código lusitano melhorou a redação do artigo, substituindo a expressão “imprevisível” pela dicção “anormal”. Tal mudança em parte supera o grave problema suscitado na Itália em razão do vocábulo “prevedibile”. Lá, os magistrados enfrentaram grandes dificuldades para precisarem quais eventos poderiam ser tidos como imprevisíveis. Primeiro, recorreu-se à fórmula do “uomo diligente”, assentando-se a regra de que imprevisíveis seriam os fatos que o bom pai de família não pudesse imaginar ao tempo da contratação. Entretanto, logo se viu que a fórmula era por demais imprecisa, afinal a mente humana é capaz de imaginar os mais extraordinários eventos. Eventos estes graves e que podem afetar a reciprocidade da relação contratual, como a guerra e as epidemias. A valorização do vocábulo “previsível” poderia inclusive gerar um paradoxo: o contraente mais diligente teria menor tutela, afinal consideraria diversas hipóteses…
Buscando superar este desconforto, Giuseppe Auletta propôs interessante exegese, na linha do próprio ordenamento português. Na sua visão, seja o conceito de extraordinariedade seja o de previsibilidade poderiam ser conduzidos ao conceito de probabilidade: se um evento não é provável, não deve ser considerado como previsível. Com razão, se o escopo das normas relativas à onerosidade excessiva não é outro que o de reequilibrar uma relação obrigacional que, em decorrência de eventos anormais, oferece injusto enriquecimento a uma parte e, ao mesmo tempo, sensível empobrecimento a outra, o critério norteador para avaliar a “previsibilidade” do evento não deve ser outro que a sua probabilidade ou normalidade. Muitos historiadores poderiam ter vaticinado que o exército russo tomaria posição na Criméia, para defender o Presidente deposto, porém dos contratantes ucranianos não se poderia exigir tamanha sensibilidade…
Seguindo essa linha histórica da civil law, a onerosidade excessiva foi disciplinada no nosso atual Código Civil, nos seguintes termos: “se nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação (art. 478).” A complementação ocorre com o art. 479, quando afirma que “a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato”. Embora esteja inserida no capítulo que trata da resolução do contrato, a onerosidade excessiva poderia ter sido tratada em local destinado à disciplina da revisão do contrato, pois existe a possibilidade de a resolução ser evitada mediante a modificação eqüitativa das condições do contrato. Essa alteração geográfica, quem sabe, poderia inclusive indicar uma distinta ideologia do contrato.
De toda sorte, caso o magistrado opte por acolher o pedido de revisão, deve ele ao menos meditar quanto à conveniência da manutenção do negócio (nos termos revisados) para a outra parte. Isto porque, com a revisão do contrato, pode surgir uma relação obrigacional que não ofereça satisfação ao credor, daí a importância de que o réu seja ouvido, externando a sua posição quanto aos termos da nova relação contratual. Considerando a dicção legal, no ponto muito semelhante à redação italiana, é possível se sustentar que a revisão é um “direito potestativo” do réu, como considera Vincenzo Roppo. O fundamental, no ponto, é não inverter o desequilíbrio, livrando o autor de um prejuízo através de sua transferência ao réu.
Quiçá pelo apreço ao direito italiano, nosso Código também utilizou o termo “acontecimentos extraordinários e imprevisíveis”, fato que motiva a atenção da academia e dos Tribunais. A sugestão de Giuseppe Auletta, especialmente entre nós, merece ser acolhida, afinal muitos contratantes não duvidam que nas próximas décadas ressurja a hiperinflação ou a imensa desvalorização cambial, afinal estes fenômenos não seriam inéditos. Alguns futurólogos temem até mesmo atentados terroristas, com nefastos efeitos na vida das pessoas e das empresas. Exigir que os contratantes disciplinem o seu relacionamento negocial considerando tais fatores parece ser um exagero, embora eles sejam “previsíveis”. O raciocínio do juiz, nesses casos, deve partir da contextualização dos contratantes naquele nicho específico no qual o contrato foi formulado, com a valorização do que, normalmente, os contratantes desse mercado costumam vivenciar, projetar, temer, acreditar, etc.
No ponto, é pertinente a posição de Ruy Rosado de Aguiar Junior, ao correlacionar a previsibilidade com a probabilidade: “a imprevisibilidade deve acompanhar a ideia da probabilidade: é provável o acontecimento futuro que, presentes as circunstâncias conhecidas, ocorrerá, certamente, conforme o juízo derivado da experiência. Não basta que os fatos sejam possíveis (a guerra, a crise econômica sempre são possíveis), nem mesmo certos (a morte). É preciso que haja notável probabilidade de que um fato, com seus elementos, atuará eficientemente sobre o contrato, devendo o conhecimento das partes incidir sobre os elementos essenciais deste fato e da sua força de atuação sobre o contrato. Para esse juízo, devem ser consideradas as condições pessoais dos contratantes, seus conhecimentos e aptidões (previsibilidade in concreto). A probabilidade, para ter relevância jurídica, deve ter um grau (notável probabilidade), porque o conhecimento deve abranger os elementos essenciais do fato futuro causador da onerosidade e a força dos seus efeitos sobre o contrato”.
Terá sido este o principal argumento do Superior Tribunal de Justiça para rejeitar os pedidos de revisão, formulados por agricultores vitimados pela “ferrugem asiática”. É que a Corte considera a ocorrência da praga um fato corriqueiro, o qual “embora reduza a produtividade, é doença que atinge as plantações de soja no Brasil desde 2001, não havendo perspectiva de erradicação a médio prazo, mas sendo possível o seu controle pelo agricultor”. Trata-se, portanto, de um risco ordinário, não atraindo a incidência da teoria da onerosidade excessiva.
Mais complexa é a discussão quanto a necessidade de demonstração da “extrema vantagem” que o evento extraordinário gera para um contratante. Como interpretar essa exigência legal? Em tese, nem todo evento que gera prejuízo para uma pessoa traz vantagens para outra. Um exemplo auxilia a colocação do problema: se meu restaurante adquire quinhentas garrafas ao mês de uma bebida produzida no Uruguai (medio medio) o súbito e agressivo aumento da alíquota de importação torna minha prestação mais custosa, porém não traz vantagem alguma para o fornecedor. É razoável invocar a resolução do contrato por excessiva onerosidade superveniente? Entendo que sim, pois o instituto tem por vocação resgatar um sinalagma perdido, mas também evitar que uma parte seja demasiadamente prejudicada em razão de circunstâncias absolutamente alheias à sua vontade.
Dentro desse contexto, o mais correto seria perquirir a probabilidade do evento desestabilizador da economia contratual. Quando mínima, em tese, poderia ser aventada a aplicação da teoria da resolução por onerosidade excessiva, não com o fim de coibir o lucro (retirando a vantagem), mas sim com o objetivo de evitar o imenso e aleatório empobrecimento do contratante (afastando o dano).
É possível afirmar, em sede de conclusão, que a linguagem utilizada pelo art. 478 e seguintes, do Código Civil, de forma alguma embaraça a atividade da academia e das Cortes, com o fim de disciplinar os critérios para a atuação da resolução por onerosidade excessiva. E justamente a identificação desses critérios que guiam a interpretação da norma permitirá alcançar um pouco de previsibilidade na aplicação do novo instituto, permitindo que o contrato cumpra o que dele se espera, com maior segurança às pessoas envolvidas.