Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte. Através dessa redação, prevista no art. 1857, do Código Civil, o direito brasileiro recepciona o histórico instituto do testamento, com o qual as pessoas exercitam a sua autonomia.
O testamento é ato personalíssimo, podendo ser mudado a qualquer tempo (art. 1858). Ou seja, embora perfeitamente formado, ele não vincula o testador; este pode rever os seus termos, adaptando as suas escolhas pretéritas às novas necessidades em sua vida.
Muito embora as cláusulas mais utilizadas sejam de cunho patrimonial, admite-se o uso de disposições testamentárias para outros aspectos relevantes de nossa vida. Na interpretação de suas cláusulas, ensina o ministro Marco Buzzi o seu melhor critério: “Na existência de cláusula testamentária duvidosa, que remete a interpretações distintas, deve-se compreendê-la de modo que melhor se harmonize com a vontade manifestada pelo testador, em atenção ao princípio da soberania da vontade desse, insculpido nos artigos 112 e 1.899 do Código Civil.” (REsp nº 1532544).
Situações delicadas envolvem a impugnação dos testamentos, após a morte do testador. Alegando vícios em sua formação, herdeiros – em geral preteridos – postulam ao Judiciário o reconhecimento de nulidade. Na medida em que o testador já não está entre nós, torna-se impossível a sua superação, com a realização de outro instrumento em absoluta conformidade com o direito.
Conciliar a segurança jurídica, através da valorização das formalidades exigidas pelo Código Civil, com o respeito à vontade do testador, é uma missão delicada a todos os julgadores. Esse desafio é bem percebido em histórico voto do ministro Cesar Asfor Rocha: “O testamento é um ato solene que deve submeter-se a numerosas formalidades que não podem ser descuradas ou postergadas, sob pena de nulidade. Mas todas essas formalidades não podem ser consagradas de modo exacerbado, pois a sua exigibilidade deve ser acentuada ou minorada em razão da preservação dos dois valores a que elas se destinam. O primeiro, para assegurar a vontade do testador, que já não poderá mais, após o seu falecimento, por óbvio, confirmar a sua vontade ou corrigir distorções. O segundo, para proteger o direito dos herdeiros do testador, sobretudo dos seus filhos”. (REsp nº. 302.767/PR, 4. T. DJ: 24.9.2001)
Com efeito, a jurisprudência do STJ é rica a respeito da matéria, valendo relembrar outros de seus importantes julgados. Assim, pondera a ministra Nancy Andrighi que “a jurisprudência desta corte se consolidou no sentido de que é admissível a flexibilização das formalidades inerentes aos testamentos, inclusive dos particulares, sabidamente menos seguros e suscetíveis às fraudes, notadamente em relação às testemunhas, tendo como base a preservação da vontade do testador”. (REsp nº. 2.005.052).
Entretanto, como diagnostica o ministro Moura Ribeiro, “o testamento público submetido a procedimento de abertura, registro e cumprimento, no qual foi constatada a presença de vício externo grave – consubstanciado na ausência de assinatura e identificação do tabelião que teria presenciado ou lavrado o instrumento – compromete a sua higidez e não permite aferir, com segurança, a real vontade da testadora, não pode juridicamente eficaz”. (REsp nº 1.703.376).
Como identificar um vício passível de superação de outro que, pela sua gravidade, conduza a invalidação de seus termos?
Um critério interessante foi proposto pela 3ª Turma: “São suscetíveis de superação os vícios de menor gravidade, que podem ser denominados de puramente formais e que se relacionam essencialmente com aspectos externos do testamento particular, ao passo que vícios de maior gravidade, que podem ser chamados de formais-materiais porque transcendem a forma do ato e contaminam o seu próprio conteúdo, acarretam a invalidade do testamento lavrado sem a observância das formalidades que servem para conferir exatidão à vontade do testador”. (REsp nº 2.005.877).
Por fim, em que pese o testamento seja um instituto secular, novas questões sempre surgem. Por ilustração, o STJ adotou uma “interpretação histórico evolutiva: permitiu a substituição da assinatura de próprio punho pela “impressão digital”, porquanto demonstrada a inexistência de restrições cognitivas do testador.
Agregou a ministra Nancy Andrighi que “em uma sociedade que é comprovadamente menos formalista, na qual as pessoas não mais se individualizam por sua assinatura de próprio punho, mas, sim, pelos seus tokens, chaves, logins e senhas, ID’s, certificações digitais, reconhecimentos faciais, digitais e oculares e, até mesmo, pelos seus hábitos profissionais, de consumo e de vida (…) o papel e a caneta esferográfica perdem diariamente o seu valor e a sua relevância, devendo ser examinados em conjunto com os demais elementos que permitam aferir ser aquela a real vontade do contratante”. (REsp nº 1.633.254).
Estes e outros casos interessantes confirmam a utilidade do testamento para a realização das necessidades e dos desejos das pessoas.
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